Nos dias 7,8 e 9 de outubro de 2010, participei do IV Congresso Internacional de Cuidados Paliativos, que foi um sucesso! Palestras de muita competência, vários profissionais capacitados, expondo sobre temas com muita propriedade, muito bem organizado, boa localização... resumindo, muito bom evento. O conceito de cuidados paliativos versa sobre cuidados especiais na cronicidade das doença, na proximidade da morte. Assuntos que ultimamente tem feito pensar (e sentir bastante).
Diante de tema como esse, impossível não se envolver, inclusive no exercício da psicologia, porque não acredito numa imparcialidade total, pois acredito que a vida do outro nos remete à nossa, de uma forma ou de outra; sendo assim, em um evento sobre cuidados paliativos, certamente iremos versar sobre a (minha, nossa) morte.
Em uma das palestras, determinado autor citou uma leitura de Rubem Alves, que com muita propriedade discorre sobre temas existenciais lindamente! As palavras são essas (com licença ao autor): “As velas nos ensinam uma lição: para brilhar é preciso morrer. As velas, á medida que iluminam, vão morrendo. A cera dura fica mole com o calor, derrete-se e escorre, como se fossem lágrimas. E, por fim, a vela se reduz a um toquinho, até que se paga definitivamente. Quem contempla a chama de uma vez queimando fica tranqüilo e sábio...”
Como disse anteriormente, não acredito no exercício da psicologia sem um certo envolvimento daquilo que o outro (cliente) nos apresenta. Embora essa seja uma boa discussão entre as diferentes abordagens psicológicas, com todo cuidado e respeito, digo novamente que não se é possível atender em psicologia sem que algo do cliente “fique em nós”, porque também somos seres humanos, dessa forma, uma certa dose de envolvimento sempre será comum nos atendimentos em psicologia. É claro que um envolvimento sutil que nos permita atender o cliente sem que nossa técnica fique prejudicada. Alguns autores conceituam que esse envolvimento como empatia, acolhimento, transferência, porém, a palavra que considero mais adequada nesse caso é: acolhimento (do outro ser humano).
Nessa dose de envolvimento natural em psicologia, assisti às palestras do congresso com uma dor pulsando em mim: o luto que vivencio em função da morte de minha irmã. Essa mesma situação existencial, tem-me feito prensar muito sobre a morte, assunto tão difícil de se abordar.
Vivemos numa cultura ocidental em que a vida não é muito pensada à partir da morte, ou seja, vivemos a vida sem pensar na morte e tampouco comentar sobre ela, haja vista as mães que não levam seus filhos aos velórios com medo que fiquem “traumatizados”. Nessas circunstâncias eu chego a a perguntar: “Mas por que deveriam ficar traumatizados? As crianças ficam traumatizadas com violência doméstica, agressões... por que ficariam com um trauma em ver alguém deitado e pessoas chorando?” Não que com essa pergunta eu esteja banalizando a morte, pelo contrário, estou mostrando a importância de se enxerga-la como evento mais que natural e presente na vida de todos; se pensarmos dessa forma, talvez possamos entender que, como faz parte da vida, deveremos vive-la com mais naturalidade.
Os nossos antepassados que trabalhavam na lavoura, comentavam sobre a morte como “Aquela Marvada” sem ousar dizer o nome, como se falar “nela” fosse trazê-la para perto; associava alguns bichos e hábitos com mal agouro, e protegiam-se contra essas situações como se isso fossem livrá-los da morte, justamente pela dificuldade em lidar com sua presença (ou seria ausência?).
Sempre que pensamos na morte, a idéia que nos ocorre é da morte que descrevi acima: a morte dos funerais, porém, enquanto pessoas que existimos no mundo, vivenciamos a morte todos os dias, e ouço dizer, quase toda hora, com muita sutileza e disfarçada nas frustrações, angústias e outros sentimentos. Como exemplo bastante claro, são as perdas constantes do nosso dia-a-dia: “perdemos a hora” de levantar, perdemos o condução, perdemos um determinado prazo, morre uma planta, enfim, essas pequenas e modestas perdas sugerem um processo de luto porque são mortes, sutis mas são!
Pensando no aspecto das perdas cotidianas, a morte deveria ser muito melhor elaborada pelas pessoas porque ela é comum, impondo sua presença com freqüência no dia-a-dia, nós seres humanos deveríamos estar muito melhores preparados para a morte. Lembro-me que no funeral que vivenciei há muito pouco tempo atrás, as pessoas vinham me abraçar solidárias e diziam que sabiam o que eu estava sentindo porque haviam passado pela mesma dor; hoje penso que com certeza, todos nós, mesmo que não tenhamos perdido algum ente querido, já vivenciamos a morte através dessas pequenas perdas, uns com menor ou maior intensidade, mas a essência da mortem, todos nós já vivemos.
Entendo que a dificuldade em lidar com a morte seja exatamente pela ausência que ela traz; quando se fala em morte, estamos dizendo que algo deixou de existir, o que nos faz tomar contato com a angústia e o vazio do nada, mas devemos lembrar que somos seres angustiados por natureza e que, independente da morte, sempre iremos nos angustiar com a vida.
Ainda sobre o congresso que participei, a última palestra que assisti foi uma mesa composta pela jovem repórter Thais Itaqui, Glória Menezes, dentre outros. A participação da Thais girou em torno de comentar sobre um programa que ela participou na Rede Globo e que abordava o tema: cuidados paliativos, (pauta proposta por ela que assim como eu, estava no processo de luto quando trabalhou nessa reportagem). A repórter salientou bastante a dificuldade de o programa ir “ao ar” depois de pronto em função do tema, ela comentou que o responsável pelo programa disse: “mas nós vamos colocar um programa no ar sobre morte, no final de ano?? As pessoas estão em ritmo de festa! É natal... isso vai prejudicar a audiência” (o programa Profissão Repórter foi apresentado dia 15/12/2009). E para sua surpresa, a audiência do programa subiu em dois pontos. A jovem repórter comentou que, após a exibição do programa recebeu inúmeros emails e dentre eles, uma mulher lhe escreveu dizendo que enquanto assistia ao programa ao lado do marido, sentiu muita vontade de dizer que o amava e ele era muito importante na vida dela.
Gostaria de comentar sobre a essa última fala da repórter. A mulher que assistia ao programa, ao deparar-se com a possibilidade da morte através dos casos apresentados no programa, sentiu vontade de cuidar da vida, de falar dos sentimentos, do amor, e do quanto somos compostos pelos conteúdos da vida: união, amor e também morte. Nós não conseguimos pensar a morte através da vida, ou seja, já que vou morrer (e essa é a única certeza que temos, como diz o dito popular) irei fazer com que minha existência seja o mais autêntica possível – cuidando dos projetos de vida, dos anseios, sentimentos, pessoas, enfim... cuidando da vida porque sabemos da morte.
Para finalizar, penso que à medida que pensamos sobre nossa própria morte, essa fica mais fácil de ser digerida emocionalmente, pois quando imaginamos que um dia deixaremos de existir, justo nosso corpo, instrumento da nossa vivência no mundo, toda e qualquer morte fica mais aceitável de ser entendida, inclusive aquela dos nossos entes queridos.
Espero que essa breve reflexão tenha despertado nos leitores a necessidade de rever suas posturas frente à finitude, seja das perdas rotineiras do cotidiano, seja das perdas dos nossos entes queridos, e que na dificuldade em entender, sentir e conviver com as perdas procurem um psicólogo que possa trabalhar todos os sentimentos pertinentes à essa questão tão sutil, difícil e existencial.